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100 anos de Etanol, um biocombustível do passado, do presente e do futuro, por Maurílio Biagi Filho

Há relatos históricos que mostram que em meados da década de 1920, um Ford de 4 cilindros participou de uma competição no Rio de Janeiro movido à álcool em uma primeira experiência promovida pelo governo através da Estação Experimental de Combustíveis de Minérios (EECM).

Redação TN Petróleo/Assessoria
29/02/2024 18:01
100 anos de Etanol, um biocombustível do passado, do presente e do futuro, por Maurílio Biagi Filho Imagem: Divulgação Visualizações: 1159 (0) (0) (0) (0)

Em meio às crescentes preocupações com as mudanças climáticas, o etanol volta a ganhar destaque e protagonismo no ano em que comemora o seu centenário. Muitos ainda acreditam que ele nasceu a partir do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975, o mais completo e eficiente programa de energia renovável lançado até hoje no mundo, mas ele é bem anterior a isso.

Aproximadamente 50 anos antes da notoriedade que ganhou com o lançamento do Proálcool, este combustível produzido a partir da cana-de-açúcar já era consumido. Há relatos históricos que mostram que em meados da década de 1920, um Ford de 4 cilindros participou de uma competição no Rio de Janeiro movido à álcool em uma primeira experiência promovida pelo governo através da Estação Experimental de Combustíveis de Minérios (EECM). O motivo dessa iniciativa foi a preocupação com a dependência da importação de gasolina no país. Chegou-se até a ser encomendado um estudo de desenvolvimento de motores à álcool para que pudesse embasar uma legislação sobre o tema. Nesse mesmo período, a Usina Serra Grande, em Alagoas, já produzia experimentalmente o USGA, biocombustível à base de álcool etílico, éter etílico e óleo de mamona que, a partir de 1927, abasteceu veículos em bombas espalhadas por Recife e Maceió.

Em 1931, ainda sofrendo as consequências da crise de 1929, o governo brasileiro decretou a mistura de 5% de álcool nacional à gasolina, mas logo depois os preços da gasolina despencaram e o álcool sumiu do mercado, voltando ao cenário após a Segunda Guerra Mundial por conta da dificuldade de importação do petróleo. Em alguns estados a porcentagem de álcool na gasolina chegou a 42% nessa época.

A nova guinada nessa trajetória se deu na década de 1970, e dessa eu me lembro muito bem porque participei, junto com muitos, de todo o processo. Ao contrário do que se pensa, o Proálcool foi um programa que nasceu do pessoal do petróleo e não da cana. Ele começou de um movimento que surgiu em 1973, através da Associgás – a Associação das Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo, que, na época, tinha o Dr. Lamartine Navarro como vice-presidente.

Dr. Lamartine, engenheiro, não era produtor, mas sempre foi um defensor do “combustível verde e amarelo”. Assim, a pedido do governo à época liderou um estudo sobre a utilização de fontes não convencionais de energia. A Associgás se transformou no fórum de debates sobre a crise do petróleo, e contava com a colaboração de vários profissionais, entre eles Maurílio Biagi – meu pai, a quem acompanhei de perto.

A conclusão do grupo resultou no documento intitulado “Fotossíntese como fonte de energia”, entregue ao Presidente Geisel em março de 1974, que se tornaria a semente do Proálcool. Desde o início, me voluntariei com muitos outros na construção desse programa. Fizemos uma verdadeira cruzada pelo Brasil para mostrar suas vantagens. Um grande impulso foi um decreto governamental que estipulou a equivalência do valor de um litro de álcool com um quilo de açúcar, que tinham uma disparidade grande de preços na ocasião. Essa equidade foi fundamental para o sucesso do programa e para que este biocombustível deixasse de ser um subproduto.

Em 1978, a indústria automobilística, com pioneirismo da Fiat, lançou um carro com motor movido exclusivamente a álcool, o que alavancou ainda mais o programa que já estava sendo fortalecido também pela conjuntura econômica com preços do mercado internacional de açúcar muito baixos, provocando um excedente de cana. Assim, o programa já começou dando grandes saltos e rapidamente o álcool não era mais somente uma mistura carburante para a gasolina. No final desta década, a produção de álcool atingiu 12,3 bilhões de litros, cumprindo seu papel de reduzir os efeitos da crise do petróleo no Brasil.

Na segunda metade dos anos 1980, o preço do petróleo começou a cair e do açúcar subir. O álcool combustível ficou menos vantajoso financeiramente não só para o consumidor como também para o produtor. Vale ressaltar que nesse período, 98,6% dos carros vendidos no Brasil eram movidos à álcool. O biocombustível começou a faltar nas bombas e essa desvantagem comercial foi utilizada como narrativa do pessoal do Petróleo para justificar o desabastecimento ocorrido.

Realmente faltou álcool nos postos, mas o motivo foi bem outro. O Departamento Nacional de Combustível (DNC) reduziu pela metade a entrega do álcool nas centrais de distribuição. Em Ribeirão Preto, fui pessoalmente conferir e vi o documento com a assinatura do DNC. Foi uma falta provocada, oficial e com papel timbrado. E tínhamos só na região quase 300 milhões de litros estocados. Eu denunciei isso, a imprensa publicou, mas não virou nada.

Alguns anos antes, a Petrobrás já havia manifestado sua preocupação de que com essa proporção de consumo de álcool x diesel e gasolina, as refinarias brasileiras não teriam condições de adequar o craqueamento do petróleo. Mas o governo convocou uma reunião entre representantes da empresa de engenharia Zanini /Foster Wheeler, indústrias de base que havia feito o projeto das refinarias de Paulínia e de Duque de Caxias, e da petroleira, na qual ficou comprovado que tecnicamente teria condições sim de mudar o craqueamento, isto é, produzir mais diesel e menos gasolina. Isso incomodou a Petrobrás e daí para frente o álcool, que foi a solução para a estatal na crise da década de 70, passou a ser um incômodo, de aliado passou a ser concorrente forte. E realmente o apogeu do álcool atrapalhava o cômodo mix da produção petroleira.

A inciativa do DNC foi só a coroação desse processo. Assim quebrou-se a espinha dorsal do programa e o carro a álcool em poucos anos praticamente sumiu do mercado. Isso custou um atraso de dezenas de anos para o setor sucroenergético, que não se organizou, e nem tinha como, para suportar a enorme sobra de etanol. Cometeu-se um erro de comunicação histórico por falta de uma estratégia para esclarecer o que realmente acontecia, deixando prevalecer a narrativa do pessoal do petróleo, que desmoralizou o combustível álcool à época. O cenário só começou a reverter quando, em 2003, foi lançado o carro flex, desta vez tendo como pioneira a Volkswagen. Até o final de 2023, mais de 22 milhões da frota de 34 milhões de veículos do país eram flex.

Muito antes disso, na década de 1990, eu já andava com uma BMW “à gasolina” somente abastecendo-a com etanol, sem fazer qualquer modificação no motor ou na injeção. Uma vez fui buscar o ministro Pratini de Morais com ela no aeroporto e ele ficou perplexo. Quem sabe isso inspirou a Volkswagen. Brincadeiras à parte, eu acredito tanto no etanol que desafiei em um encontro com jornalistas a todos abastecerem seus carros com álcool, mesmo sendo à gasolina de fábrica. Alguns abasteci de pronto na usina completando com etanol o tanque, e me responsabilizei caso tivessem algum prejuízo. Nada aconteceu com os veículos.

Mas o etanol é muito mais versátil. Ele é usado em aeronaves agrícolas, na produção de bioplásticos, na aviação comercial por meio do SAF (Sustainable Aviation fuel) e em carros elétricos movidos a células de hidrogênio. Hoje, a diversificação da produção sucroenergética também é enorme. O uso da bioeletricidade gerada a partir do bagaço da cana mudou o cenário da matriz de energia renovável. Temos ainda o gás biometano e o etanol de segunda geração como exemplos para ampliar o uso dos subprodutos da cana, garantindo novas receitas e contribuindo ainda mais para a redução de emissões de carbono.

O nosso desafio agora é fazer uma comunicação correta para que finalmente a gente consiga conscientizar o consumidor de que o etanol é melhor para o meio ambiente e que, mesmo que seja mais caro em algumas épocas, vale a pena. Segundo a Única, o uso do etanol hidratado (utilizado diretamente no tanque dos veículos) e do etanol anidro (adicionado à gasolina) conseguiu evitar mais de 240 milhões de toneladas de gases causadores do efeito estufa. E esse é só um dos benefícios desse produto 100% nacional, que proporcionou muitos avanços tecnológicos, ganhos econômicos, sociais, ambientais e que ainda tem muito a oferecer. Hoje o setor canavieiro atingiu o que chamamos de economia circular, aproveita-se tudo.

Quando o assunto é transição energética, já passou a hora do etanol voltar ao protagonismo, que aliás nunca deveria ter perdido, e do Brasil assegurar sua posição de liderança nesse mercado. Estamos com a faca e o queijo – melhor dizendo, a cana – na mão: é só cortar!

Sobre o autor: Maurílio Biagi Filho é empresário e membro do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp

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